Por: Enéias Tavares
No noitário dessa semana, Enéias Tavares detalha o processo criativo do responsável pelos concepts dos personagens de A Todo Vapor: o ilustrador paulistano Karl Felippe, que entre outros feitos é um dos fundadores do Conselho Steampunk do Brasil, além de ser um dos melhores artistas da cena de fantasia em nosso país!
O que define um bom concept art? O visual ou a praticidade? Qual a diferença entre um concept para personagens literários de um para quadrinhos ou ainda para um projeto audiovisual, que precisará ser executado e tornado real? Apesar de já ter trabalhado com vários artistas em Brasiliana Steampunk – entre eles, Jessica Lang, Marcus Lorenzet, Diego Cunha e Poliane Gicele, para citar apenas alguns – é sempre um desafio lidar com personagens que têm uma dimensão visual bem específica em sua cabeça e ao mesmo tempo dar liberdade aos artistas para comporem suas próprias interpretações.
Por outro lado, o bacana de todo e qualquer projeto colaborativo nunca é a pretensa fidelidade à ideia original e sim a surpresa decorrente de onde você acabou indo parar. O que mais aprecio em projetos coletivos é justamente a surpresa diante de uma escolha que eu nunca teria pensado. No caso da minha parceria com Karl Felippe, algumas palavras precisam ser ditas, primeiro sobre ele e então sobre sua arte. Mas confesso que resumir esse cara e aquilo que ele é capaz de criar é um grande desafio e vocês verão o porquê.
Karl Felippe, ao lado de Bruno Accioly e Raul Cândido, é um dos fundadores do Conselho Steampunk do Brasil, além de ter estado presente na organização da SteamCon de Paranapiacaba desde sua primeira edição, em 2013. Além de trabalhos como ilustrador, Karl é um leitor profícuo e um grande conhecedor de livros, filmes e saberes arcanos. No início de uma conversa, ele é bem reservado, mais dado a ouvir do que a falar. Mas quando fala, com sua voz calma e articulada, é para nos apresentar um conhecimento enciclopédico incrível que vai puxando linhas aqui e ali, abrindo gavetas, portas e janelas para inúmeras referências, nunca deixando de lado o olhar gentil e os gestos econômicos.
No caso de sua arte – feita nos moldes tradicionais com papel, lápis e alguma correção digital –, é como se abríssemos uma fenda temporal e voltássemos aos grandes ilustradores dos séculos XVIII e XIX, que recriavam obras literárias clássicas com seu traço. Eu não consigo não pensar nas linhas de Gustave Doré e John Gilbert, dois ilustradores que reapresentaram Dante, Milton, Poe e Shakespeare. Acredito que, na atualidade, seus correlativos internacionais seriam Portia Rosemberg, de Jonathan Strange & Mr. Norrell – Seguinte –, e Keith Thompson, da série Leviatã – Galera Record. Numa época em que a arte digital domina o mercado, Felippe nos agracia com um espetáculo de detalhamento e sensibilidade que nos emociona e encanta, muitas vezes até dispensando a necessidade da cor. Além disso, o cara também tem pendores literários. As Sinistras Aventuras de Zeca Patrocínio – inédito –, que tive o privilégio de ler em 2017, promete ser um dos melhores romances históricos/fantásticos a ser produzido em nosso país.
Desenho de Karl Felipe para o Suplemento Escolar de Brasiliana Steampunk – Cores Poliane Gicele
Assim, quando começamos a conversar sobre os figurinos de A Todo Vapor!, que deveriam tanto fazer jus à estética steampunk como também ser confortáveis aos atores, não tive dúvidas de que Felippe seria o artista ideal para nos ajudar a visualizar isso. Para melhor entender seu processo, peguemos um exemplo e vejamos como ele trabalha. Entre vários personagens importantes da série, escolhi a médium indígena Vitória Acauã, uma das primeiras a ter a atriz escalada: Pamela Otero.
O trabalho de Karl começa com a leitura do roteiro e a anotação dos elementos importantes da história, bem como das atividades que os heróis terão de executar. Isso feito, ele então busca referências fotográficas de utensílios e peças de roupa. Pouco a pouco, esse quebra-cabeça começa a ser esboçado, com cada herói ou vilão recebendo um guarda-roupa imaginário completo. Karl também toma notas para depois serem usadas pela equipe do figurino. Um bom exemplo disso são seus comentários sobre os acessórios de Vitória: “Do jeito que eu desenho, a Vitória usa gauges nas orelhas – aqueles plugues tipo alargador, só que pequenos – provavelmente feitos de bambu, e brincos de argola passados por eles. Mas provavelmente só os brincos de argola já devem funcionar. Ela também usa pulseiras de argola metálicas em ambos os braços, bracelete metálico largo, cordões de palha e um bracelete indígena trançado no direito. Sem anéis – bem, talvez anéis nos polegares fiquem interessantes.”
Pesquisa Fotográfica para a construção dos Concepts
Há também a preocupação de produzir esses utensílios de um modo que a heroína possa correr e caminhar normalmente, além de eventualmente lutar: “Não é um espartilho completo vitoriano que ela usa – para uma situação de “trabalho” e aventura, seria muito incômodo, especialmente para alguém de natureza tão selvagem –, e sim um corpete simples – bodice –, estilo parecido com um Dirndl ou Landhausmode, ou aqueles de feiras renascentistas, com ilhoses de fecho na frente ou atrás. O mesmo cuidado para as botas de cano curto, estilo das botas vitorianas femininas mesmo, que tinham o salto curto e eram bem práticas, se estivessem na floresta ou em uma estação de trem.”
Há nessa fase do processo a compreensão de que nem todos os elementos imaginados serão seguidos, por questão que dizem respeito tanto a orçamento quanto liberdade criativa das figurinistas, na época Jesse Reeves e Débora Puppett, depois acrescida por Thais Viana. São instruções simples pensadas por ele, que darão às figurinistas com o que trabalhar e também improvisar: “O cinto por cima do corpete é uma guaiaca masculina – que tem menos decorações na fivela –, das que tem três algibeiras, e o cinto atravessado logo abaixo do corpete pode trazer acoplado uma bolsa de couro e um pequeno punhal. A saia foi puxada para o estilo cigano sem camadas, terminando nos tornozelos. Podem usar tons de terra, ocre, ou verde musgo. Outra opção pode ser um lenço – mais para um xale –, amarrado ao redor da saia. Se a saia for em tons de terra, um verde ou turquesa é melhor para o lenço.”
Conceito Detalhado de Vitória Acauã e Versão Final, com cores de Poliane Gicele .
Sobre o rosto da personagem e suas marcas de guerra, Karl sugere: “Pintura do rosto em preto e vermelho, para reforçar a origem dela. Os riscos dos lados do rosto e cruzando o queixo e lábio inferior são em preto, assim como o delineamento dos olhos, que é puxado um pouco para dentro, em direção ao nariz (algo quase egípcio), e para fora, ficando mais esfumaçado até chegar na linha dos cabelos. Toda essa parte em preto nos olhos pode ser feita sobre uma sombra de base vermelha, para realçar. Leves realces vermelhos em diagonal logo abaixo das maçãs do rosto. Outra opção: Fascinator de plumas discreto. As plumas poderiam ser preto e branca, como as plumas do pássaro Acauã.”
Trata-se, como podem ver, de um trabalho detalhado e cuidadoso, que respeita tanto a ideia da personagem quanto os elementos culturais que a circundam. Agora, como transformar essas ideias fantásticas em figurinos reais, tendo já o elenco definido e o início das gravações bem à frente? Para ver como foi a segunda parte da criação do figurino de Vitória Acauã, aguarde o próximo noitário, quando conversaremos com Jesse Reaves, Débora Puppet e Thais Viana sobre dar vida às ideias de Karl Felipe e a como chegar aos figurinos de A Todo Vapor! Enquanto isso, deixo com vocês outros concepts detalhados da websérie:
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