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Enéias Tavares & Felipe Reis

VIII - Noitário de A Todo Vapor! – Quem gosta de literatura brasileira?

Por: Enéias Tavares


O título provocativo do Noitário de Produção desta semana aponta para um problema em nosso país: a pouca valorização da cultura e da literatura nacional. Para tratar disso, Enéias Tavares bateu um papo com Daniela Campos, a assistente de direção de A Todo Vapor! e também sua colega de Letras. Nesta conversa entusiasmada, os dois discutem a literatura na escola, a importância de valorizarmos nossos clássicos, especialmente em um ano eleitoral, e… Nomes literários para felinos domésticos!

Na primeira leitura que fiz com a equipe de A Todo Vapor!, em julho de 2017, as impressões não poderiam ter sido melhores. Atores afinados, produtores entusiasmados e integrantes das equipes de figurino, fotografia, trilha sonora e efeitos especiais apaixonados pelo conceito da série e pelo timing dos diálogos. Mas havia uma pessoa, em particular, que me chamou a atenção. A cada vez que um nome literário surgia – Juca Pirama, Capitu, Aurélia, Vitória Acauã, Leonardo Pataca, Padre Eugênio, entre outros – a assistente de direção Daniela Campos ou pulava da poltrona ou gargalhava pra todos ouvirem. Obviamente, eu identifiquei de imediato a leitora voraz e uma possível colega com a mesma formação que a minha: Letras. Nesta entrevista, conversei com ela sobre a produção de A Todo Vapor! e sobre a importância desse projeto para a valorização e o aprendizado da literatura e da cultura brasileira.

Dani, um grande prazer conversar contigo. Em primeiro lugar, me fala de ti e de como tu chegaste ao projeto A Todo Vapor!

O prazer é meu Enéias e muito obrigada pela introdução que você fez. Eu realmente não consigo me manter discreta quando me entusiasmo diante de um projeto. Sou formada em Letras pela USP, habilitada em português e espanhol, fui professora no ensino médio por 12 anos. Além da literatura e dos idiomas, tenho o teatro e o cinema como outras grandes paixões. Justamente por isso atualmente deixei de lecionar para poder me dedicar à carreira de atriz e cineasta. Sou também dubladora, o que uniu a arte de interpretar ao idioma.

Mesmo assim, a carreira de Letras nunca deixa de estar comigo. Conheci a Thais Barbeiro em um teste no Rio de Janeiro e desde então mantivemos contato, fiz um curso de cinema, dirigi três curtas metragens e quando vi que a Thais e o Felipe Reis estavam precisando de alguém para ajudá-los no projeto, eu me ofereci para fazer qualquer coisa, porque fiquei apaixonada pelo roteiro. A história de A Todo Vapor é a minha cara, pois une duas das minhas paixões: literatura e cinema!!!

Sabe, Dani, que umas das coisas que motivou a criação de Brasiliana Steampunk foi o fato de eu ter saído do ensino médio sem gostar de literatura brasileira, sobretudo pelo modo como ela me foi ensinada. Você vivenciou isso também ou sua experiência foi diferente?

Eu fui agraciada porque tive professores incríveis de literatura! Um, em especial, foi meu padrinho de formatura da faculdade de Letras, o saudoso Fernando Teixeira de Andrade, que me ensinou a enxergar a literatura como arte e a relacioná-la à história e às demais artes: pintura, escultura, cinema, teatro, música. Toda arte é expressão de uma época, seja para negá-la ou afirmá-la. Esse aprendizado eu conservei nas minhas aulas.

Além disso, meus professores e professoras narravam as histórias dos livros com verdade e entusiasmo, com nuances teatrais, representando as personagens e suas vozes e isso me fascinava, fazia com que as personagens saltassem das páginas dos livros. Duas professoras me inspiraram a continuar esse legado nas minhas aulas: a querida Mércia Aparecida Itolgyesi e a professora Lu Cunha, como ela gosta de ser chamada.


Enquanto Bento Alves se concentra, Daniela Campos está pronta para bater a claquete!


Vamos trocar algumas figurinhas? O meu romance nacional favorito de todos os tempos é O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. E o seu?

Eu adoro esse que você citou, inclusive adoraria uma Bertoleza ou Rita Baiana na série, e por que não uma Pombinha também? Mas o meu romance nacional favorito hoje e sempre é Dom Casmurro do bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis. Minha gata se chama Capitu! Linda e enigmática como ela, além de dissimulada! Eu sempre quis interpretar a Capitu. Ajudei o meu querido e saudoso diretor de teatro, Luis Bacelli, a montar Dom Casmurro no teatro e ele me dava carta branca para manter a ambiguidade da obra a fim de que o público decidisse se Capitu traiu ou não Bentinho. Aquela foi minha primeira assistência de direção.

Agora, auxiliando o Felipe Reis, eu adoro ver a Thais Barbeiro dando vida a essa personagem feminina, que para mim é a mais fascinante da literatura brasileira. Depois dela, vêm todas as outras que eu também adoro: Aurélia Camargo, Lucíola, Iracema, Diadorim e tantas outras personagens de Guimarães Rosa. Meu gato se chama Miguilim!! Semelhante ao herói literário que lhe deu nome, ele é bem carente e chorão, mas entusiasmado com tudo que descobre no mundo, adora desafios!

Risos. Minhas gatas também têm nomes literários: Penélope (da Odisseia) e Mona (Mayfair, de Anne Rice). Mas diferente dos seus, as minhas felinas são bem diferentes das suas contrapartes literárias. Mudando de assunto, o que você acha que falta nas aulas de literatura hoje? É um problema dos professores terem dificuldade em ensinar, é um problema de desatenção dos alunos ou é um problema cultural?

Acho que é um pouco de tudo isso que você mencionou. Em primeiro lugar, a pouca valorização que o nosso país dá a própria cultura, e isso desde sempre: valoriza-se muito a cultura estrangeira e pouco ou nada a nacional. A tecnologia veio para somar, mas se for utilizada de forma descontrolada, torna-se um vício e muitos estudantes não conseguem se concentrar na sala de aula em virtude da ansiedade que o celular tem gerado, com a necessidade de estar sempre conectado com tudo e todos. Os professores, por sua vez, precisam diversificar seus materiais de trabalho, como vídeos, músicas, visitas virtuais a museus, filmes, quadrinhos e outros.

Depende dos recursos que a escola oferece para os profissionais e sabemos que nas públicas isso é mais complicado, mas também depende da criatividade e poder de improviso do professor que realmente tem vontade de ensinar e está sempre estudando, se atualizando, pesquisando novas formas de ensinar. Isso é se aproximar do universo dos alunos e aumentar o repertório deles de maneira eficaz, despertar o interesse deles, em vez de fazer a literatura parecer algo distante ou chato.


Os clássicos da literatura e sua recriação em Brasiliana Steampunk


Eu adoro isso que mencionas, Dani. Em Brasiliana Steampunk, série literária que deu origem a A Todo Vapor!, já tentamos fazer, produzindo tanto conteúdo tradicional, como um Suplemento Escolar ou a seção Educacional do nosso site, como também audiodramas, cardgames e outros atrativos que podem ser usados em sala de aula. Falando em A Todo Vapor!, o que você destacaria como os pontos fortes do roteiro da série? Lembrar do teu divertimento na nossa leitura me alegra muito.

Eu acredito que o Brasil precisa de heróis e vilões nacionais. Gosto de me achar uma antropofágica como os modernistas, “tupi or not tupi that’s the question”, como Oswald de Andrade já colocou no seu manifesto. Precisamos valorizar a nossa cultura, temos autores incríveis, uma literatura maravilhosa que inclusive é muito lida lá fora e desprestigiada nas escolas pelos próprios estudantes brasileiros. Por que não podemos vibrar com uma história de investigação à moda de Sherlock Holmes com heróis que são referências da literatura brasileira? Por que só consumir a Liga da Justiça, Batman, Homem-Aranha, Coringa, Lex Luthor, se podemos ter Capitu, Juca Pirama, Vitória Acauã, Aurélia Camargo, Delegado Pataca e Padre Eugênio transfigurados em heróis também?

Vamos consumir o que vem de fora sim, mas também vamos adaptar essa estética à nossa realidade e cultura. Foi isso que os modernistas de 22 fizeram, pós-revolução industrial, na época da máquina a vapor, e é o que nós estamos fazendo no século XXI, em plena revolução digital, produzindo uma websérie steampunk que valoriza a cultura nacional com personagens incríveis, que transcendem a época em que foram escritos! Os modernistas estariam orgulhosos por continuarmos o seu legado. Quase posso ver Mário e Oswald sorrindo entusiasmados. Delírios de uma cineasta letrada!

Sabemos que todo projeto artístico apresenta seus próprios desafios. Quais estão sendo os das filmagens de A Todo Vapor!? Como assistente de direção, você deve ter boas histórias a contar sobre a dinâmica da equipe e do trabalho do Fê Reis.

O Fê Reis tem a brejeirice do Juca Pirama, às vezes eu fico tão irritada quanto a Capitu, mas na maior parte eu me divirto muito com ele! Também é um diretor muito assertivo e proativo, isso me faz admirá-lo bastante. Nossos desafios são muitos, principalmente por ser uma produção de poucos recursos, bem tupiniquim mesmo, cinema de guerrilha, mas a vontade de fazer acontecer é tão grande que conseguimos parcerias de pessoas que também acabam se apaixonando pelo projeto e nos apoiam para conseguirmos locações, alimentação, logística. A equipe se tornou uma grande família, porque acabamos ajudando um ao outro, vemos o empenho de cada um e valorizamos o trabalho de todos.

No set, eu costumo ser a pessoa mais detestada, porque preciso controlar o tempo para garantir que possamos cumprir o cronograma da ordem do dia, então sou a chata que apressa a fotografia, a arte, o figurino, a maquiagem e até mesmo o diretor! A que dá as broncas que o diretor me pede para dar, e a que tenta resolver o mais rápido possível os problemas que possam acontecer nas filmagens, auxiliando o Fê Reis nas tomadas de decisões. Mesmo com essa imagem mais enérgica própria da função, eu procuro sempre estar com meu sorriso no rosto e bom humor até para dar bronca, não acredito que pressão e cara feia gerem bons resultados no set, para falar a verdade, nem na vida! Acho que respeito, empatia e saber falar são primordiais para o ser humano construir e estabelecer boas relações.


Daniela Campos – Assistente de Direção de A Todo Vapor!


Agora, uma pergunta que tenho feito questão de repetir a todos os entrevistados do nosso Noitário de Produção: por que, Dani, o Brasil precisa de uma série de TV com super-heróis brasileiros? Tem a ver com o momento em que estamos vivendo ou com uma deficiência cultural de séculos?

Precisamos, em primeiro lugar, para valorizarmos a nossa própria cultura, que é rica e diversificada demais. Somos uma nação miscigenada, de várias cores e sotaques e isso é lindo! Em vez de fomentar uma cultura de ódio, como o momento de crise econômica e política tem gerado, precisamos mostrar que somos bravos e fortes, temos mulheres lindas sim, mas também incrivelmente inteligentes e lutadoras, e isso é o mais importante. Temos pessoas de várias cores e sotaques, frutos de uma mistura de etnias que nem sempre se deu de maneira romântica, como nos livros de Alencar, mas que nos torna fortes e ainda mais interessantes, afinal somos esse caldo de cultura popular oriunda dos índios, dos negros e dos europeus, num primeiro momento, e posteriormente de outras culturais também, como a oriental, por exemplo.

Há que se aproveitar o que se tem de melhor em cada uma delas e celebrarmos todas elas em nós mesmos. É o momento de darmos valor à nossa cultura e nos unirmos para melhorar a educação no país. Não é isso que precisamos justamente agora, na hora de escolher nossos representantes políticos?

Certamente, Dani. Acredito que esse ponto que tocaste é a base do que estamos fazendo com A Todo Vapor!, uma websérie divertida e excitante, mas também engajada em questões urgentes da nossa sociedade. Além disso, recuperarmos os heróis da nossa literatura é um convite a buscarmos nossas origens. Para um país considerado sem memória, isso é primordial.

O brasileiro precisa estudar a si mesmo, estudar sua origem, de onde vem a nossa raça como lutadores, mas também de onde vem a nossa preguiça e mau hábito de só querer levar vantagem, como ainda vemos em muitas pessoas. Todos temos um pouco de Juca Pirama, mas também de Leonardo Pataca. Somos heróis imaturos, como Macunaíma. Queremos mudança, mas temos resistência em mudar a nós mesmos, preguiça de ir às ruas reivindicar nossos direitos e, principalmente, estudar os candidatos em que vamos votar. Tem ficha limpa? O que já realizou durante seu mandato no poder público? Qual sua postura diante das denúncias de corrupção dos colegas? Quais as suas propostas, são viáveis ou promessas ao vento? Deixamos tudo para a última hora e votamos no menos pior ou no engraçadinho como voto de protesto! Bela maneira de protestar!

Apontamos a corrupção em Brasília, mas praticamos pequenas corrupções diárias. Criticamos o nepotismo, mas se tivermos oportunidade, empregamos a família toda ou compadres, revivendo o “toma lá, dá cá” que já era descrito por Manuel Antônio de Almeida em “Memórias de um sargento de milícias” ainda no século XIX. Sim, Enéias, precisamos da bravura, da força e da honestidade dos nossos guerreiros indígenas Juca Pirama e Vitória Acauã, e por que não da magia deles? Precisamos da independência e do feminismo corajoso da bela Capitu. Precisamos cultuar os nossos heróis e aprender com eles que ser herói no Brasil não é fácil, mas não é impossível! Nós, como artistas, estamos sendo heróis lutando bravamente pela valorização da cultura do nosso país e em nosso país. E vamos com tudo, vamos a todo vapor!

Muito obrigado pela conversa, Dani. Adorei essa animação e vamos continuar nesse pique. Um beijo pra ti e um beijos nos felinos literários que você tem em sua casa!


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